Estaciono o Honda Fit com uma baliza meio mal feita. Faltam dez minutos para o sinal da escola tocar e já não existem mais vagas sobrando na rua de mão única. Desço do carro feliz comigo mesma, satisfeita por não chegar atrasada. Mas minha alegria se esvai ao dar de cara com a pequena aglomeração de mães acumulada na frente do portão. Que preguiça.
Depois de um mês já começo a reconhecer alguns rostos. Aquela de blusa verde é a Rita, simpática. Me passou o contato da professora de inglês. Agora, aquela outra ali, não sei o nome. Parada bem de frente para o portão cinza, de salto alto e nenhum fio de cabelo para fora do coque. No primeiro dia de aula a vi fofocando sobre as meias de uma aluna serem coloridas demais.
Ela está tagarelando sem parar em uma rodinha de três mulheres que parecem bastante aborrecidas. Atravesso a rua mirando na mureta de tijolinhos, que julgo estar a uma distância segura o suficiente. Me sento em silêncio, mas é em vão. Logo percebo um par de saltos finos marchando em minha direção. A mulher para e cílios longuíssimos me varrem de cima a baixo (uma crítica muda aos meus tênis de academia e legging tie dye).
-Você é a mãe da garota nova, não é? Qual é o nome dela mesmo?
-Oi, tudo bem? – Estou bem também, obrigada por perguntar. – Sim, sou eu. Mãe da Sharon.
-Ah. É a menina que veio de mechas roxas na semana passada? - Um lampejo de reconhecimento percorre seu rosto frio. – Sei quem é. Minha filha comentou sobre vocês.
Dou um sorrisinho amarelo como resposta, torcendo para a conversa se encerrar por aí. Mas os saltos agulha não se movem nem um centímetro.
-Eu estava falando dela agora mesmo, da minha filha – continuou. – Como você é nova por aqui é bom já ficar sabendo que ela é a melhor aluna da sala. Sempre tira a nota mais alta em matemática. Ela quer ser engenheira quando crescer. E a sua Sharon, o que quer ser?
-Santa – respondo sem pensar.
Recentemente Sharon viajou para Aparecida do Norte com a avó e voltou obcecada pela imagem revestida em manto azul e pedrarias. Desde então não para de falar que quer ser santa e morar no céu. Lembro da pequena figura de sete anos brincando pela casa com a toalha de banho sobre os cabelos negros, como um véu, e dou uma risada baixa. Só então noto a mulher à minha frente me encarando, perplexa, como se eu fosse a pessoa mais louca do mundo. Não demoro muito para decidir que nem vale a pena dar uma explicação para ela.
O sinal toca, dando a desculpa perfeita para me livrar daquela situação desconfortável. Ouço o barulho característico de um bando de crianças juntas e caminho para a frente do portão cinza, agora aberto. Levo só um segundo para identificar Sharon entre os colegas, de cabelos ao vento e rosto sorridente, correndo pelo pátio em minha direção.
Ela me encontra agitando uma folha de papel em suas mãozinhas, orgulhosíssima do desenho que fez na aula. Eu abaixo e observo o papel com cinco bonecos de palitos segurando o que provavelmente são guitarras. Uma clara representação dos Rolling Stones, sua banda preferida. Elogio o desenho e dou um beijo em sua testa, seguido de um abraço bem apertado. Esqueço de mulheres arrogantes de salto agulha. Tudo o que importa está dentro desse abraço. Eu e minha garotinha cheia de personalidade.
Me levanto e seguro sua mão para atravessamos a rua. Vamos embora voando, sem olhar para trás.
O que tem nessa marinada
Esse conto nasceu de um exercício da Comunidade da Escrita da Ana Holanda em junho de 2023. A proposta era escrever um texto a partir da música Balada do Louco, da Rita Lee. Pegou todas as referências? 😊
Até a próxima!
Marinando é o meu olhar traduzido em crônicas e mini contos leves e descontraídos sobre a beleza do cotidiano.
Quinzenalmente, nos domingos às 9h.
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Escrito por Marina Cyrino Leonel
me lembro muito desse exercício ❤️
"Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu
Se eles tem três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu" <3