Sempre quis receber uma revelação através de um sonho. A resposta de um problema importante, talvez um conselho divino. Como se os deuses reservassem um breve instante da sua agenda apertada só para sussurrar no meu ouvido a direção certa a se seguir. Daquelas coisas bem de filme. Bem mágicas. Sempre desejei que isso pudesse acontecer comigo.
Até que aconteceu.
Demos um LEGO de presente de aniversário para o meu pai. 647 pecinhas com potencial de formar um astronauta - ou uma nave, ou um cachorro espacial. Três em um, dizia a caixa. A mesma também recomendava o brinquedo para idades a partir de nove anos, mas tenho certeza que demoramos mais que uma criança recém alfabetizada para sair da primeira página do manual de instruções.
A família toda estava reunida na mesa de jantar. No lugar do frango assado com batatas de domingo, minúsculos plásticos coloridos se espalhavam pelo tampo de vidro. Celulares esquecidos no sofá. Três horas depois e lá estava ele: seis centenas de módulos empilhados, combinados e encaixados em um imponente astronauta. Suporte incluído. Batemos palmas.
Recolhemos as embalagens vazias e reparamos nas pecinhas extras que ficaram de fora. Minha mãe as depositou com cuidado na cuba do centro de mesa, no melhor estilo não-quero-lidar-com-isso-agora. Lembro de pensar que era bom o astronauta se manter intacto, já que aqueles bloquinhos, cedo ou tarde, certamente se perderiam. Dei um último abraço de aniversário no meu pai e fui para casa.
A noite sonhei que estava sentada na mesa de jantar, com o caderno de instruções nas mãos. Virei a página e li, claro como um relâmpago iluminando o céu escuro da tempestade:
Peças extras devem ser armazenadas dentro do capacete do astronauta.
Volto pra casa dos meus pais. Recolho as pecinhas da cuba e abro o capacete dourado. Elas deslizam da minha mão para a redoma como um viajante que retorna ao lar.
-Como foi que você pensou nisso?! - Esganiça minha mãe, se aproximando.
Olho pra ela com a intensidade de um profeta prestes a transmitir uma mensagem sagrada.
-Sonhei - digo, cheia de solenidade.
Ela fica arrebatada. Quer que eu escreva um e-mail para a própria LEGO relatando a minha história.
-Também não é pra tanto, né mãe?
-É sim. Eu achei muito legal - insiste ela.
-Foi legal, mesmo. Sempre quis ter algum tipo de revelação em sonho.
-Talvez seja um começo para revelações maiores. Como um canal que foi aberto.
Empurro o capacete para cima e as pecinhas se escondem, como um bebê protegido no ventre da mãe. Observamos o astronauta em silêncio por alguns segundos enquanto absorvo as palavras da minha mãe. Espero que sim.
Meu pai entra na sala.
-NÊ! Você não vai acreditar no que a Marina sonhou..
Até a próxima!
Marinando é o meu olhar traduzido em crônicas e mini contos leves e descontraídos sobre a beleza do cotidiano.
Quinzenalmente, nos domingos às 9h.
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Escrito por Marina Cyrino Leonel
Assino algumas newsletters, comento poucas. Tá errado, eu sei... mas esta me fez sair do email e vir aqui, escrever pra ti, Marina. Algo do texto foi capaz de transpor a tela e tocar aqui. O presente, o brincar adulta como criança de nove, a escrita fluida, o estar em família em volta da mesa, o estar sensível aos sonhos, o retorno à casa paterna, o amor da mãe te fazendo voar - vai, minha filha! vai, sim! Tantas lindezas confortáveis, saudosas, amorosas... É isto... amorosa notícia em carta. abraços de cá.
Não existe essa frase no manual? Caraca!!! Má, sonha com 6 números aí, vai! Rs