Mudei para perto da escola onde estudei. A casa do senhor que vendia geladinho na garagem virou um restaurante japonês. A papelaria onde eu comprava folha de fichário do Ursinho Pooh, no entanto, continua lá. Ampliou, mudou de dona e segue cobrando os olhos da cara.
Conheço todos os trejeitos desse lugar. Sei, por exemplo, que nos horários de entrada e saída da escola, a rua para. Então conferi o relógio antes de sair de casa na última sexta-feira. Onze horas da manhã. Peguei a chave do carro e desci - de elevador, obrigada, Deus - para a garagem. Mas saí do portão e dei de cara com a rua parada.
Franzi o cenho ao ver a fila de pais buzinando e o bando de adolescentes uniformizado tomar a calçada. A saída não era só depois do meio-dia? O que estava acontecendo? Me empertiguei sobre o volante para espiar sobre os muros da escola e senti o estômago embrulhar ao me enxergar na menina descendo a rampa. Bolsa tiracolo pequena e garrafinha de água na mão.
Final de novembro.
Semana de prova.
Minha escola é tradicional e puxadíssima. Prepara os alunos para as principais faculdades desde a quinta série, misturando turmas de diferentes anos durante as provas bimestrais para simular o ambiente do vestibular. Eu tinha onze ou doze anos quando cruzei o portão para fazer mais uma dessas inúmeras provas, de mãos suando e barriga virada.
Já sabia qual era minha sala, mas conferi o mapa duas vezes só pra garantir. O professor usava uma camisa branca de manga comprida fechada até o primeiro botão, cabelo penteado para trás e mãos nas costas. Não conhecia seu nome, mas sabia que dava aula de química para a oitava série. Naquela época, a única química que eu sabia existir era do Ryan Atwood e da Marisa, em The O.C. Ele me cumprimentou com um aceno de cabeça duro enquanto eu agachava embaixo da lousa para deixar a bolsa no chão.
Tirei a lapiseira, a borracha e uma caneta azul. Desliguei o Simens A50 - nunca confiava no modo silencioso - e levantei com a garrafinha Minalba na mão. Encontrei a carteira com meu nome. A menina do lado direito usava sutiã de bojo e maquiagem preta. Me encolhi na cadeira de madeira e esperei o sinal tocar.
Não lembro qual era a matéria e muito menos se fui bem ou mal. Mas lembro perfeitamente de ter descoberto naquele dia que meu primeiro celular, aquele bloquinho cinza ridículo com luz laranja, era capaz de tocar o despertador mesmo estando desligado. Meu coração disparou e as pernas amoleceram ao reconhecer as notas inconfundíveis do Felipe Dylon invadindo a sala de prova.
As cabeças se erguerem em câmera lenta, curiosas, formando uma nuvem densa de expectativa no ar. Havia aquela sensação quase palpável de que alguém está prestes a se dar mal, e dessa vez seria eu. Eu. Suspensa pelo toque polifônico de “Musa do Verão”. 2.99 desviados clandestinamente dos quinze reais de crédito que minha mãe havia dado.
O professor notou primeiro a movimentação dos alunos e, só depois, o toque. Caminhou à frente da sala e encarou o amontoado de bolsas e mochilas, levantando a primeira delas, devagar, até a altura do ouvido. Prosseguiu sua execução uma a uma. Ninguém respirava e eu tinha certeza que meus batimentos cardíacos iriam sobrepor o som do celular a qualquer momento. Deveria me entregar? Esperar? Agarrei a garrafinha Minalba e percebi um riso frouxo do meu lado. A menina da maquiagem preta olhava para mim, a descarada. Sabia que minha bolsa era a próxima.
O professor ergueu a alça e eu cheguei a colocar o pé para fora da carteira, derrotada, entregue. Mas o celular parou de tocar. Acho que quando eu morrer vou precisar acertar essa conta lá em cima, porque o despertador simplesmente parou de tocar. O professor voltou a bolsa para o chão e lançou um olhar severo que fez os alunos voltarem imediatamente às suas avaliações.
Depois desse dia, nunca mais fiz uma prova sem tirar a bateria do celular.
Me assusto ao ver um homem escancarar a porta do carro estacionado. Freio de repente enquanto ele pede desculpas, rindo e gesticulando para a filha que está atravessando a rua se apressar. A menina que eu vi descendo a rampa da escola passa com tanta vergonha que eu penso que vai se jogar embaixo do meu carro.
Fica tranquila, amiga. Vai ficar tudo bem.
O bom da adolescência é que ela acaba.
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Escrito por Marina Cyrino Leonel
Amei! Ri muito com o toque de Musa do Verão. Hahahaha! Na minha época do colégio não existia celular ainda, então não passei por nada parecido e fiquei aqui pensando qual seria o toque do meu celular na sétima série. E o engraçado é que nunca sofri com as provas, até ter filhos. Agora em semana de prova sou eu que suo nas mãos e tenho dor de barriga. Hahaha.
Ahhh!! Obrigada pela recomendação, Marina! Você é um amor 🧡